A história do poliamor - 2ª parte
Publicado em 2012-08-24 na categoria Absex / Poliamor


Já se falou aqui de uma referência espiritualista, e essa é mesmo o ponto de origem da primeira referência ao «poliamor», que veio da Igreja de Todos os Mundos (e que é, na verdade, o nome da igreja que o personagem principal de Um Estranho Numa Terra Estranha cria, no livro) que a noção de poliamor nasceu em 1990. Morning Glory Zell-Ravenheart publicou, na newsletter (que mais tarde passou a revista) Green Egg, um artigo chamado «A Bouquet of Lovers», em Maio desse ano.

A Poli-História

Nesse artigo, constava uma nova palavra: «poly-amorous», um adjectivo que se referia a pessoas que tivessem relações amorosas e sexuais com mais do que uma pessoa simultaneamente, ou que o quisessem fazer, e que reconhecessem o direito de outros o fazerem. De acordo com Oberon Zell, tal como relatado por Alan no seu blog Poly in the Media, poucos meses depois, em Agosto do mesmo ano, a Igreja de Todos os Mundos foi convidada a um evento público em Berkeley, e organizou um Glossário de Terminologia Relacional para lá apresentar – aí sim, pela primeira vez, foi usada a palavra «polyamory», poliamor em português.

No entanto, esta foi uma criação e utilização da palavra para um círculo relativamente restrito de receptores: essencialmente neo-pagãos como a própria Morning Glory e Oberon. A palavra tinha já então sido criada mas não desfrutava de circulação suficiente para se tornar uma referência internacional com a projecção que possui hoje em dia – Ryam Nearing ainda publicará em 1992 um livro chamado The Polyfidelity Primer, onde poliamor não encontra qualquer expressão, muito embora a ideia que lá se fizesse passar fosse essencialmente essa.

Desde então, uma boa parte da comunidade pagã em torno de Oberon e da sua família tem estado profundamente ligada à difusão de meios alternativos de pensar a família, sempre dentro de uma lógica religiosa, pagã e espiritualista – o que, apesar disso, não é dizer pouco, tendo em conta a projecção nacional nos EUA. De resto, outra das figuras de proa dessa vertente do movimento poliamoroso é a própria Deborah Anapol. Fundou, junto com Ryam Nearing, a Loving More Magazine em 1995; em Março de 1997, publicou o livro Polyamory: The New Love Without Limits, que é, até à data, um dos ex-libris do movimento poliamoroso na sua vertente espiritualista, tantra e pagã.

A outra vertente do poliamor tem um pendor marcadamente menos religioso ou transcendentalista, podendo mesmo dizer-se que parece bastante mais cosmopolita, e talvez até menos preocupada em mostrar-se anti-capitalista e mais em resolver alguns dos problemas corriqueiros que surgem nas relações amorosas não-monogâmicas consensuais dos países de «Primeiro Mundo» da sociedade ocidental.

Apesar de não existirem ainda dados quantitativos que permitam fundamentar indubitavelmente esta questão, parece ser este o modelo que mais influenciou, por exemplo, a comunidade poliamorosa em Portugal ou, pelo menos, a mais expressiva.

Uma mulher, chamada Jennifer Wesp, estava a debater «a moralidade de ter relações não-monogâmicas, na [mailing list] alt.sex» com Mikhail Zelany, quando «[se cansou] de escrever não-monogamia [e] e não era boa prática retórica utilizar uma [palavra] negativa, hifenizada, para tentar fazer passar uma ideia positiva». Assim, enquanto compunha um e-mail que ela própria considerava fazer parte de uma flame war, Wesp resolveu criar uma palavra que pudesse transmitir uma ideia positiva, que não estivesse linguisticamente vinculada a uma comparação directa com a monogamia.

Portanto, neste caso, como no anterior, a preocupação era criar uma palavra que viesse suprir uma falta sentida pelos intervenientes. Ao que parece, a palavra «não-monogamia» para Wesp, tal como a expressão «polifidelidade» para Morning Glory, ficavam em falta face ao conteúdo ideológico que se queria fazer passar. Havia algum elemento que precisava de ser reenquadrado, o que gerou uma irrupção de inovação linguística. No caso de Jennifer Wesp, gerou-se um certo nível de interesse em torno dessa discussão, e dessa palavra, ou antes, dessa discussão surgiu a massa crítica suficiente para criar uma nova mailing list da Usenet – a 20 de Maio de 1992. A mensagem, e subsequente conversa, que propõe a criação do grupo está ainda disponível online.

Esta discussão é, em si, reveladora de boa parte do que já acima se tinha mencionado: onde colocar (dentro da hierarquia da Usenet) um grupo para falar sobre poliamor? E de onde surge, afinal, esta palavra, que não se encontra em nenhum dicionário? Isto tem mais que ver com romance ou com sexualidade? A palavra existiria com ou sem um hífen a separar (sendo que a proposta inicial de Wesp inclui um hífen e o grupo final não)? Tudo isto perguntas levantadas por várias pessoas que estavam envolvidas na discussão. No início, Wesp contava com cerca de 30 pessoas que, achava ela, iriam ter interesse em colocar lá mensagens e dinamizar a lista de discussão. Ela própria admite que a palavra foi inventada, que não é uma «palavra a sério» mas que «se pode sempre ter esperança».

Mal sabia ela…

 A Força do Meme

Para uma palavra tão inventada e reinventada, para uma série de constantes ressurgimentos tão obscuros, para uma mailing list de 30 pessoas, numa altura em que a Internet era o privilégio de poucos e praticamente não existia na forma em que actualmente a conhecemos, «poliamor» é um meme que até teve sucesso. E, de acordo com o Google N-Gram Viewer, as referências têm vindo a crescer imenso; quando esse crescimento se compara com a expressão «poligamia», por exemplo, vê-se que esta tem tido uma estabilização e até alguma perda de relevância, embora se ressalve que, ainda assim, «poligamia» é uma palavra várias vezes mais frequente.

O objectivo desta pequena viagem histórica não é, de forma alguma, pretender indicar que os vários surgimentos desta expressão, na sua versão adjectivo, comportavam já os indicadores determinantes de quais iam ser as principais problemáticas do movimento poliamoroso. Ainda assim, estamos perante uma palavra que desperta ideias – contra e a favor – e que suscita determinadas filiações que têm vindo a repetir-se e a repercutir-se ao longo desta breve história (muito pouco amorosa, afinal de contas).

Um último pensamento: é nestes momentos que se entende a diferença fundamental entre um adjectivo e um substantivo. O poliamor, como identidade memética, só ganhou força quando surgiu, efectivamente, como um substantivo de pleno direito. É ao ganhar o nome que o poliamor permite aos seus sujeitos adquirir uma identidade, adquiri-lo como identidade para si mesmos e a partir desse ponto estabelecer uma política de identidade, apresentar uma face, uma moralidade, estabelecer um padrão ou conjunto de padrões – e, a partir daí, abrir uma série de questionamentos normativos, ao mesmo tempo que a existência de uma identidade poliamorosa abre o espaço à criação de uma outra normatividade. Alternativa mas, ainda assim, normativa. Esse é o poder do meme, mas também é a sua ameaça. A força memética que alimenta a propagação de uma ideia é a mesma força que faz pender sobre essa ideia a possibilidade de imutabilidade, de permanência.

Talvez daqui a outros vinte anos (e com mais contribuições de ferramentas automáticas de recolha e compilação de dados) seja possível fazer uma história da palavra «poliamor» e afins mais completa, e encontrar outras coincidências (ou falta delas). Para já, um glossário de terminologia relacional de inspiração neo-pagã e uma mailing list com cerca de 30 pessoas deram lugar a 394 mil resultados numa busca Google por «polyamory», 261 mil por «polyamorous» e 18.900 resultados para «poliamor»…

in, Interact

 
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