A história do poliamor - 1ª parte
Publicado em 2012-08-23 na categoria Absex / Poliamor


Poliamor. Um substantivo. Uma palavra com uma longa história e que explodiu recentemente em Portugal, embora tenha vindo a crescer sucessivamente nos países de língua inglesa desde há quase duas décadas. Se traçar a história deste movimento é algo relativamente simples, muito mais complicado, por comparação, é traçar a história desta palavra, que nasceu antes de nascer, que nasceu várias vezes, em vários contextos diferentes, muito embora boa parte dessas vezes tenha sido como adjectivo.

E isso prova bem – a este ponto retornarei mais tarde – a diferença fundamental entre adjectivos e substantivos, entre fazer e ser. De resto, o texto esteve para se chamar «Poliamor, ou Da Falta de Originalidade que o Amor Tem». Mas este título tem mais trocadilhos.

O objectivo deste texto é fazer uma breve história desta palavra. Isso vai-nos levar, por incrível que pareça, a 1953 e a uma série de ferramentas online sem as quais a feitura deste artigo seria praticamente impossível. Antes disso, há que oferecer uma definição do que é, afinal, esta palavra no seu contexto contemporâneo, no seu contexto como movimento social emergente. Haritaworn et alia (2006: 518) definem poliamor como «a suposição [assumption] de que é possível, válido e valioso [worthwhile] manter relações íntimas, sexuais e/ou amorosas com mais do que uma pessoa».

Poli-Pré-História

A base deste trabalho parte de uma confirmação, compilação e aprofundamento do trabalho levado a cabo pelo blog Polyamory in the News, onde o seu autor – Alan – tem vindo a pesquisar sobre a origem da palavra, usando as mesmas ferramentas à disposição de qualquer utilizador da Internet: as da Google.

As primeiras ocorrências deste campo lexical fazem-se na forma de adjectivação, com um sentido semelhante a uma acepção geral do conceito (e que seria, apesar de tudo, actualmente considerada incorrecta pela comunidade): a atracção ou prática sexual com várias pessoas. Vamos então olhar brevemente para as primeiras ocorrências de palavras da família de «poliamor».

O primeiro registo bibliográfico que conhece, até à data, é de 1953, e surge na Illustrated History of English Literature, Volume 1, por Alfred Charles Ward – a Henrique VIII é dado o adjectivo de «determinado poliamorista», enquanto se comenta o surgimento do protestantismo na Inglaterra, algo que surge, de acordo com o autor, precisamente por causa desta característica do rei.

Claro que esta utilização tem uma conotação necessariamente irónica e negativa, mas demonstra já como esta junção de raízes latinas e gregas vem de longa data, embora actualmente a palavra na sua forma adjectivada tenda a ser «poliamorosa» (mais sobre qual seria a forma correcta de escrever aqui).

A referência seguinte cabe à palavra «poliamorosa», que surge numa obra de ficção, Hind’s Kidnap, de Joseph McElroy, em 1969, associada à ideia de que a instituição «Família» está «acabada». Mais uma vez, uma conotação negativa, e já aqui a tensão se cria entre um arranjo familiar não-monogâmico e a possibilidade de que a ideia de família (tradicional, normativa) poderia ser posta em causa.

Agora de França, e saltando alguns anos para 1971, na publicação XVIIe Siècle, Joséphine Grieder diz que «ser politeísta é ser poli-amoroso» (esta afirmação é depois citada em La Rochefoucauld and the Seventeenth-Century Concept of Self, de Vivien Thweatt, publicado em 1980). Um comentário interessante, que liga o paganismo e a espiritualidade de inspiração druídica ao conceito de se ser «poli-amoroso», na ligação com várias divindades e aspectos da divindade – ligação essa que, de resto, inclui ainda o hífen, nesta estranha relação entre duas etimologias diferentes, feitas colar ou colidir.

Aproximamo-nos mais ainda do tema nos seus moldes actuais em 1972, quando surge um livro de seu nome Marriage: For & Against, de Harold Hart , em que o autor diz «Parece-me bastante óbvio que as pessoas são muito comummente poliamorosas» (p. 201) mas também, noutra passagem, «Pode dar-se o caso, como dizem alguns, que as mulheres, por natureza, não são poliamorosas […] muitos poucos homens ou mulheres são verdadeiramente polígamos; poucos estariam inclinados a envolverem-se em duas ou mais…» – a pré-visualização fica-se por aí, mas esta questão está longe de ser arrumada, e faz ainda parte de muitas discussões online sobre o contemporâneo entendimento de poliamoroso: se existirá ou não uma qualquer pulsão biológica, genotípica, natural que predisponha os humanos para os relacionamentos não-monogâmicos.

Dentro dessa retórica, a monogamia é então construída como uma imposição social com uma qualquer racionalidade por detrás (controlo de poder económico, sexual, moral, entre outros, para exemplificar).

O contexto começa a mudar: a referência seguinte encontra-se nos resumos do 7.º encontro anual da Associação Americana de Antropologia (de 1975). Encontra-se na biografia apresentada de Carol Motts, onde se alude a um futuro da humanidade, no século XXIII, dominado pelo homo pacifis, cujas características incluem ser «individualístico, livre-pensador, poliamoroso, vegetariano».

Aqui dá-se um encontro de duas correntes, a académica e a da ficção científica – a ficção científica que é, pelas mãos de Robert Heinlein (e, entre outros, do seu livro Um Estranho Numa Terra Estranha) uma das principais inspirações do contemporâneo movimento poliamoroso, e uma das referências mais frequentemente encontradas.

O adjectivo surge outra vez em 1977, numa obra sobre as representações na ficção da I Guerra Mundial (The First World War in Fiction, de Holger Klein), em que Itália aparece como «poliamorosa-incestuosa». Mas dois anos depois, em 1979 , estabelece-se uma ligação entre o uso deste adjectivo e a comunidade LGBT; em The Gay Report: Lesbians and Gay Men Speak Out About Sexual Experiences and Lifestyles, foge-se à ideia de bissexualidade como sendo demasiado limitativa e, para a substituir, usa-se «poli-amoroso, querendo dizer muitos tipos de relações amorosas com muitos tipos de pessoas».

Aqui se nota uma das tensões primárias em torno da corrente ideia de poliamor: estamos por ventura perante uma identidade de orientação sexual? Qual é a relação do poliamor com as práticas sexuais que podem (ou não) estar envolvidas? (Nota: não, efectivamente não podemos confundir poliamor com uma identidade de orientação sexual, porque estamos perante uma identidade de relação; por outro lado, em várias entrevistas jornalísticas em que participei, esta dúvida surgiu mais do que uma vez, portanto parece ainda ser actual referi-lo.)

Sobram ainda duas outras referências deste poli avant la lettre: novamente numa obra de ficção, The Disinherited, por Matt Cohen, em 1986, onde se fala de «perversão poliamorosa»; por fim, na New Scientist de 22 de Abril de 1989, um artigo que fala sobre o avô de Charles Darwin e o seu poema erótico em que plantas são tratadas como pessoas, que levam a cabo as suas «tramas poliamorosas».

Daquilo que se conhece, até ao momento, estas são as únicas referências que pré-datam a história da palavra como substantivo. Entra agora o ponto de viragem, e vemos este meme a nascer (mais uma vez, parece e, mesmo assim, em duplicado).

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