O incesto: O abuso sexual intra-familiar
Publicado em 2018-02-23 na categoria Sexo100Tabus / Incesto


Incesto é um acto intimamente associado ao "proibido". A proibição do incesto, presente em quase todas as suas definições, parece estender-se à proibição de se falar no assunto, tornando-se o mesmo um tabu, escapando assim a um desejado e necessário esclarecimento mais profundo sobre este tema. Replicamos aqui um interessante artigo publicado pela USP/Searas.

A proibição do incesto, representada através dos mitos, religiões e códigos é uma regra universal. Segundo LEVI-STRAUSS (1969), a proibição do casamento entre parentes próximos pode ter um campo de aplicação variável, de acordo com a definição de parentesco, mas a proibição ou a limitação das relações sexuais está presente em qualquer grupo. Desta forma, a proibição do incesto situa-se no limiar entre a natureza e a cultura. Entendemos que, por detrás da necessidade de tamanha proibição, só possa existir um desejo universal equivalente.

Para que, então, o incesto é proibido?

Várias teorias têm sido utilizadas para explicar a finalidade desta proibição. Estas podem ser divididas em biológicas, sociais e psicológicas.

As teorias biológicas concebem um "horror ao incesto inato" que seria a protecção natural contra os malefícios resultantes do cruzamento endogâmico. Sabe-se que o cruzamento endogâmico realmente causa uma diminuição da variabilidade dos genes, e portanto, oferece uma maior chance de expressão da recessividade. Mas esta pode ser manifestada tanto em doenças hereditárias quanto em traços benéficos. Além disto, semelhanças genéticas podem estender-se para além da família, como em um grupo de certa localização geográfica. Outro aspecto que reforça a não importância da consangüinidade é a proibição do casamento entre parentes por afinidade.

Ora, se a possibilidade de ocorrência de relações incestuosas fosse biologicamente negada, estas não precisariam ser proibidas por leis sociais, mostrando que a questão não passa pelos aspectos biológicos e sim por aspectos sócio-culturais.

As teorias sociais priorizam a importância da exogamia, pois ela amplia a família e possibilita um sistema mais cooperativo e democrático.

Segundo as teorias psicológicas, a não actuação do incesto permite a diferenciação e a simbolização de funções dentro da família (pai, mãe e irmãos), possibilitando o desenvolvimento do indivíduo e da família. Nesta perspectiva, a proibição do incesto é um factor organizador, demarcando limites (COHEN, 1993).

FREUD coloca a proibição do incesto como um estruturador mental, pois é através da repressão dos desejos incestuosos que se estrutura o aparelho mental nas suas três instâncias: id, ego e superego. O superego é a instância formada pela internalização da lei, sendo o ego responsável pela intermediação entre as leis internas e as leis externas (FREUD, 1923).

O "não" à actuação dos desejos edípicos delimita as fronteiras entre o desejo e a realidade. Segundo FREUD, existe um antagonismo entre as exigências dos impulsos e a inserção do indivíduo na cultura e o indivíduo sempre deverá lidar com esse conflito. O desejo incestuoso, presente em todos os seres humanos, deve ser reprimido para a sobrevivência da civilização: "O incesto é antisocial e a civilização consiste numa progressiva renúncia a ele" (FREUD, 1930).

Para nós, a dificuldade de conceituar o incesto encontra-se no facto de envolver dois conceitos sociais, que podem variar segundo a época e a cultura: o abuso sexual e a família.

A sexualidade humana é um assunto complexo. A ampliação do conceito de sexualidade formulado pela Psicanálise mostra o quanto é difícil identificá-la, principalmente na observação de que a sexualidade não se restringe aos genitais e que o sofrimento também pode provocar prazer.

Qualificar um acto como abusivo é também envolve vários factores. Por exemplo, a violência física que acompanha o acto sexual não caracteriza o abuso, pois, uma relação sadomasoquista é consentida pelos participantes e provoca prazer.

Será que o consentimento pode, então, determinar o abuso sexual?

Acreditamos que não, pois a validade de um consentimento é uma questão subjetiva. O consentimento de uma criança para uma relação sexual é socialmente aceite como não válido, mas será que apenas a idade cronológica, como a lei determina, define esta possibilidade de escolha?

Consideramos questionável o consentimento, até mesmo dos adultos, nas relações sexuais incestuosas, pois a actuação dos desejos incestuosos reflete a falta de estruturação do aparelho mental, sendo o autor do acto incestuoso incapaz de postergar as pulsões, vivendo concretamente experiências que deveriam ser reprimidas.

Socialmente, existem outras relações nas quais se espera uma assimetria de funções, como por exemplo: médico-paciente, chefe-funcionário, professor-aluno, etc... Nestas, existem funções assimétricas e complementares pré-estabelecidas e um relacionamento sexual entre tais parceiros caracterizaria uma perversão destas funções. Por considerar estas relações como um equivalente incestuoso, COHEN (1993,1999) denominou este tipo de relação como "incesto polimorfo".

Consideramos que o abuso sexual não pode ser qualificado por actos concretos e nem a sua gravidade ser avaliada pelas marcas físicas, mas sim pela vivência emocional de cada indivíduo de tais situações. Assim, outros factores podem ser mais importantes do que enquadrar a relação sexual em actos libidinosos ou conjunção carnal, diferenciando se houve ou não a conjunção carnal, como valorizar a duração do relacionamento e o vínculo existente entre as pessoas envolvidas. Quanto ao conceito de família, funcionando como base do tecido social, este pode ser definido pela existência de um laço emocional diferenciado que justifique uma relação da qual se esperam funções psico-afetivas relativas a membros de uma família.

Trazemos aqui, a nossa definição, de que o incesto manifesta-se através do relacionamento sexual entre pessoas que são membros de uma mesma família (exceto os cônjuges), sendo que a "família" não é definida apenas pela consanguinidade ou mesmo afinidade, mas, principalmente, pela "função social de parentesco" exercida pelas pessoas dentro do grupo. (COHEN; GOBBETTI, 1998)

Mundialmente, é difícil estabelecer uma estimativa dos casos de incesto, devido ao estigma e ao segredo que envolvem estes casos. Um factor de concordância em todos os estudos é que, contrariando os alertas de senso comum em relação às crianças sobre o "contacto com estranhos", geralmente o abuso sexual é praticado por pessoas próximas e conhecidas, principalmente pessoas da família.

Pesquisas indicam que a maioria dos pais "abusivos" tem na sua própria história de vida experiências de abuso ou negligência na infância. Além da percepção do ciclo "vítima-agressor", nota-se uma dinâmica específica nestas famílias onde se incluem todos os membros, tornando inadequada a estigmatização nestes termos.

Desde 1993, o CEARAS (Centro de Estudos e Atendimento Relativos ao Abuso Sexual), no Departamento de Medicina Legal, Ética Médica e Medicina Social e do Trabalho da Faculdade de Medicina da USP, vem trabalhando com a questão do incesto, através de estudos e pesquisas sobre o tema, além do atendimento em saúde mental a famílias em que houve a denúncia de um abuso sexual praticado entre os seus membros, abordando o fenómeno através do referencial psicanalítico.

Considerando a concretização do incesto como a actuação de desejos que viola as leis sociais que instituem o funcionamento da família, a equipe do CEARAS acredita que a possibilidade de compreensão desse fenómeno e do seu tratamento esteja estreitamente ligada à inserção de uma lei interna que é da repressão e outra externa que é proporcionada pela cultura. Assim, os pacientes do CEARAS são encaminhados do Fórum, local onde existe um processo aberto referente à relação incestuosa, já que a Justiça actua como representante das leis sociais.

Dentro da percepção de que o incesto é um problema que envolve toda a família, o CEARAS prioriza o atendimento familiar, pois considera necessário um trabalho terapêutico para que esta funcione como um grupo estruturado, realizando também atendimento individual para alguns membros do grupo.

Na experiência clínica, percebemos que a problemática é muito mais ampla e complexa, havendo o envolvimento, direto ou indireto, de toda a família numa dinâmica inconsciente que favorece a existência de uma relação sexual incestuosa.

A seguir, apresentaremos uma avaliação qualitativa de dados retirados dos atendimentos no CEARAS (GOBBETTI, 2000), procurando refletir sobre este tipo de dinâmica familiar que envolve a actuação da relação incestuosa.

CARACTERIZAÇÃO DO ABUSO SEXUAL INTRAFAMILIAR

Foi realizado um quadro geral com dados de prontuários dos pacientes atendidos pelo CEARAS desde o início do seu funcionamento em junho de 1993 a dezembro de 1999. No período considerado, este Serviço atendeu 84 casos de abuso sexual intrafamiliar, realizando 39 atendimentos familiares e 82 atendimentos individuais. A duração média dos atendimentos é de um ano.

Tais dados referem-se aos seguintes itens: pessoas envolvidas directamente na relação sexual incestuosa, duração do relacionamento incestuoso e tipo da relação (se foi configurada por conjunção carnal ou por actos libidinosos diversos da conjunção carnal) e serão apresentados em 3 gráficos, cujas tabelas encontram-se em anexo.

Gráfico 1 - NÚMEROS E TIPOS DE RELACIONAMENTOS INCESTUOSOS

Fonte: GOBBETTI, 2000

Dos casos atendidos pelo CEARAS, há uma diversidade de relações de parentesco entre as pessoas envolvidas em relacionamentos incestuosos, demonstrando que eles aparecem de diversas formas. Apesar disto, podemos observar a predominância da relação pai e filha (32,73% dos casos), sendo seguida, embora com uma percentagem bem menor (18,18%), da relação padrasto-enteada.

Observamos também o pai biológico envolvido em 38,53% das relações incestuosas. Assim, a relação incestuosa entre padrasto e enteados parece não ser explicada pela falta de laços consanguíneos, mas justamente pelo oposto: o padrasto cumpre a função social de pai.

A maioria dos relacionamentos incestuosos ocorreu entre parentes próximos e consanguíneos, ou seja, entre pais e filhos e entre irmãos (53,14%). Estes dados divergem da crença popular que considera "famílias em risco" para relações abusivas, as famílias reconstituídas, ou seja, aquelas formadas por novas uniões, onde a relação entre as pessoas não é confirmada pela consanguinidade. Embora nossa cultura tenda a atribuir maior gravidade aos crimes configurados por conjunção carnal (como o estupro, por exemplo), percebemos que a maioria das relações incestuosas da nossa amostra foram permeadas por actos libidinosos diversos da conjunção carnal (70,64%). Mesmo isolando as relações homossexuais, que contam como 17,28% da amostra, por não poderem ser configuradas como conjunção carnal pela definição do Código Penal Brasileiro, a porcentagem de relacionamentos caracterizados por actos libidinosos continua maior (63,74% de atos libidinosos contra 36,26% de conjunção carnal).

Outro factor a salientar é o menor índice de relações abusivas envolvendo crianças ou adolescentes do sexo masculino como "vítimas" (apenas 16,36% do número de relacionamentos incestuosos). Acreditamos que os meninos tenham mais dificuldade em discriminar e, principalmente, denunciar as relações sexuais abusivas. Uma hipótese pode ser o facto da maioria das relações sexualmente abusivas percebidas serem relações homossexuais, o que implica em mais um fator discriminatório, o que pode levar a uma estigmatização com o rótulo de homossexuais.

Questionamos aqui a definição de uma relação sexualmente abusiva, principalmente aquelas caracterizadas por toques e carícias. O facto de não oferecerem provas objectivas da ocorrência não diminui necessariamente a gravidade das consequências emocionais aos seus participantes. É o caso, por exemplo, de determinados "cuidados maternos" que se estendem aos filhos a um período maior do que o necessário, como mães que amamentam filhos de 3 anos de idade ou dão banho em filhos adolescentes. Esse acesso da mãe ao corpo dos filhos talvez ajude a mascarar uma relação abusiva, o que pode sugerir uma explicação ao facto de mulheres aparecerem num índice muito baixo como "abusadoras" em vários estudos e mesmo em nossa amostra do CEARAS (2,73%).

Gráfico 2 - DURAÇÃO E TIPOS DE RELAÇÕES

Fonte: GOBBETTI, 2000

Neste estudo, quanto à duração de uma relação incestuosa, na maioria das vezes, a relação é duradoura, não se resumindo a alguns episódios. Das relações incestuosas que foram, de alguma forma, discriminadas pelos pacientes por um determinado período de ocorrência, ou seja, com exceção das classificadas como dados desconhecidos (31,82% das relações), 60% tiveram uma duração maior do que 1 ano, sendo que 33,33%, uma duração maior do que 3 anos. Cabe aqui destacar que, embora agrupadas num item, dentro das relações com duração maior de 3 anos, encontramos relações com durações de 5, 6 e 8 anos. Uma relação com duração superior a 3 anos foi considerada suficiente para se concluir que a relação fazia parte do quotidiano da família em questão.

A longa duração da relação incestuosa sugere a percepção, em algum nível, e o envolvimento de toda família, assumindo uma importância qualitativa, pois significa uma mudança no tipo de relacionamentos existentes dentro do grupo familiar, traduzindo-se numa violência psicológica.

Uma relação sexual incestuosa que dura mais de um ano mostra que as pessoas diretamente envolvidas apresentam praticamente uma relação "conjugal", seja entre pai e filha ou entre irmãos, por exemplo; é a demonstração concreta da troca de papéis dentro do grupo familiar.

Gráfico 3 - DENÚNCIA DAS RELAÇÕES INCESTUOSAS

Fonte: GOBBETTI, 2000

Verifica-se que a denúncia dos casos encaminhados ao CEARAS foi feita em menor número por terceiros (apenas 20,22% das denúncias) ou por outros parentes, que foram considerados aqui por parentes não envolvidos na relação incestuosa e que não moravam junto com a família em questão (4,49% das denúncias). Este dado pode significar que as famílias conseguem manter o segredo ou que as pessoas ainda mantém o conceito da "sagrada família", procurando não se envolver em conflitos percebidos em outras famílias.

A porcentagem maior de denúncias foi efectuada pela mãe (48,31% das denúncias), sendo seguida pela denúncia da própria criança ou adolescente abusada (23,60%). O pai efetuou a denúncia em apenas 3 casos (3,37%), parecendo que o mesmo tem dificuldade em exercer a sua função de colocar limites dentro da família.

É importante destacar um dado não contido na tabela: das denúncias realizadas contra o pai ou padrasto, 35,18% delas foram feitas pelas mães, sendo que grande parte foram feitas por mães que estavam separadas do companheiro. Nas famílias em que ocorreu relação incestuosa paifilha( o) ou padrasto-enteada(o), quando o casal morava junto, a maioria das denúncias apareceu ou por uma demanda da própria da criança/adolescente que vivenciou a situação ou por pessoas que não moravam na casa (terceiros ou outros parentes). Já, como se pode notar, grande parte das relações incestuosas entre irmãos foram denunciadas, com excepção de duas, pela mãe (66,67%). A dificuldade da denúncia do companheiro pelas mães de crianças ou adolescentes abusados parece ser o indício de uma complexa relação, onde há uma impossibilidade de proteção ou cuidado materno aliado à relação incestuosa.

Este dado confirma-se no atendimento clínico do CEARAS; nestes casos, percebe-se uma grande ambivalência de sentimentos destas crianças e adolescentes em relação aos seus pais (biológicos ou substitutos). Mas revelam-se, muito mais nítidos, sentimentos de raiva ou desprezo em relação às mães do que aos pais ou padrastos. Na verdade, a criança ou adolescente parece responsabilizar a mãe pela relação sexual, sentindo mais raiva pela não interdição do que pelo acto sexual em si. 

CONCLUSÕES

O trabalho de atendimento em saúde mental com referencial psicanalítico a famílias permite a observação das interacções afectivas entre os membros do grupo e possibilita a interpretação destas interacções através das motivações inconscientes. São os indivíduos e os complexos modos de se relacionarem socialmente que estabelecem a chamada dinâmica familiar.

Percebemos a relação sexual incestuosa como sintoma de uma dinâmica familiar não estruturada, na qual todos os indivíduos encontram-se envolvidos. Algumas características, como a longa duração destas relações e a dificuldade da denúncia são esclarecedoras neste sentido. A compreensão do funcionamento psicossocial da família incestuosa deve levar em conta não só o abuso sexual genital relatado, mas a dinâmica afectiva da família como um todo.

Desta forma, as marcas objectivas, que são valorizadas pela sociedade, não caracterizam a gravidade do abuso. O incesto trata primordialmente da impossibilidade de estruturação do indivíduo; a actuação dos desejos incestuosos não permite o pensamento simbólico e, portanto, a assimilação das funções sociais para o desenvolvimento mental do indivíduo.

Portanto, a definição de abuso sexual, utilizada na nossa cultura através da Justiça, é uma definição moral de proibição que, por vezes, distancia-se das preocupações da área de saúde mental, que caminham no âmbito ético das relações humanas. A violência do incesto não pode ser traduzida apenas pela relação sexual genital, mas principalmente pela não diferenciação das funções familiares.

 
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